Para a rondoniense Joyce, 22, a parte mais dolorida dos 18 dias em que ficou detida foi se sentir impotente diante do sofrimento prolongado da filha, de três anos de idade. “Para mim, o que mais doeu foi ver a minha filha chorar e apontar o dedinho vendo e pedindo uma bolacha, com fome, e eles negarem”, relembra, sentada no aeroporto de Confins, em Belo Horizonte, enquanto tenta com o marido decidir como a família voltará para casa, em União Bandeirante, Porto Velho (RO).
Pamela Cristina, 21 anos, de Governador Valadares, parece abatida e emocionada ao falar da experiência no saguão do aeroporto, recém-chegada após 18 horas de viagem de ônibus e avião.
“É muito sofrido. A gente entra com uma mente sadia e sai com uma mente doente, aterrorizada. Muito doente”, diz. “A gente se sente um lixo, a pior coisa do mundo. Eles falam pra gente ‘aqui não é sua casa. Se você quisesse ser tratada bem, você ficava na sua casa’. A gente vem atrás de uma vida melhor para a família da gente, acaba achando isso.”
Joyce e Pamela chegaram ao Brasil na noite de sexta-feira (7), em um avião trazendo brasileiros deportados dos Estados Unidos que pousou no aeroporto internacional de Confins, na região metropolitana de Belo Horizonte. De acordo com o Itamaraty, eram 130 os brasileiros trazidos nesse voo. No desembarque, o número parecia menor. Muitos estavam detidos há quase 20 dias, há mais de dez sem tomar banho, todos bem mais magros do que quando partiram. A Polícia Federal (PF) não soube informar o número de passageiros.
O voo fretado pelos EUA e autorizado pelo governo brasileiro saiu do Texas, parou para reabastecer em Guayaquil, no Equador, e chegou à capital mineira por volta das 23h40. Todos os brasileiros passaram pela fiscalização da Polícia Federal antes de serem liberados; a partir dali, cabia a eles conseguir continuar a viagem para casa, com pouco ou nenhum dinheiro. Nos relatos ouvidos pela BBC News Brasil, muitos disseram que tiveram roupas, bagagem e até dinheiro extraviados no período em que estiveram detidos.
“Jogaram nossa roupas fora, viemos com as roupas deles. Nossas carteiras, documentos, tudo jogou fora. Minha identidade, CPF, ficou tudo com eles”, contou um dos passageiros, de Teófilo Otoni, em Minas Gerais, que preferiu não ser identificado.
Muitos chegaram vestindo moletons e calçados distribuídos pelos agentes de imigração como uniforme. Alguns traziam nos pulsos as pulseiras coloridas com seus números de identificação e a temperatura de cada um. Todos diziam que estavam há pelo menos dez dias sem tomar banho, e há mais de 12 horas sem comer nada, tanto adultos quanto crianças.
Recebidos pelas câmeras da imprensa no portão de desembarque quando chegavam apenas com a roupa do corpo e poucos documentos e dinheiro guardados em um saco plástico dado pela imigração, muitos esconderam o rosto para não aparecer em fotos ou filmagens. A reportagem conversou com alguns desses brasileiros, mas optou por não revelar seus sobrenomes para preservar sua privacidade.
Nos relatos, muitos contam ter passado fome, frio e abuso psicológico nas semanas em que passaram detidos em El Paso pelo serviço de imigração americano, em locais que eles chamam de tendas, onde dormiam em colchonetes no chão, e na “cadeinha”, um prédio mais parecido com uma prisão, onde alguns também dormiram.
Agressividade e humilhação
“A única coisa que eu posso dizer é que aquilo ali é um inferno. Guardas batem nas pessoas, empurram os outros. Na minha cela uma menina estava conversando com o marido e o filho dela, o guarda empurrou os dois na cela, caíram ele e a criança”, diz Pamela, que afirma que o tratamento é ainda pior para as famílias mexicanas e da América Central.
Os brasileiros dizem que havia dois tipos de detenção: uma em grandes tendas de lona branca, com colchonetes espalhados pelo chão — mulheres para um lado e homens para o outro — , em que ficavam até 120 pessoas num mesmo cômodo. E nas “cadeinhas”, que são pequenas prisões com celas, em que os detidos dormiam no chão frio, em pleno inverno americano. Nas cadeinhas, um banheiro aberto ficava no meio das celas, sem nenhuma privacidade.
Joyce, mãe da menina de três anos e que ficou 18 dias detida, diz que o clima era de intolerância até com as crianças.
“Tiraram o leite que as crianças maiores bebiam, deixaram só o tipo leite materno para crianças de até um ano. Quando isso aconteceu, minha filha ficou três dias sem comer. Depois acho que ela esqueceu que existe leite.”
O pai, Cleony, de 25 anos, conta que a menina chegou a desmaiar de fome. “Danou a vomitar, só água no estômago. Só depois de uns dias que ela aceitou tomar soro e melhorou. Daí começou a aceitar bolachinhas, outras coisas”, afirma.
“As crianças não podiam correr. Começavam a correr, vinha um gritão. ‘Vai para o colchão con su mamas! Sus niños com sus mamas’. Teve um dia que me cortou o coração que ela chegou perto de mim e chorava e dizia ‘papai, vamos embora, vamos embora’.”
“Todo dia ela acordava espantada, apavorada, diz Joyce. “Quando a neve começou a cair, todas as crianças queriam ver. Os guardas foram lá e colocaram uma toalha na porta para não deixar.”
Quando a reportagem começou a conversar com os passageiros, muitas crianças que estavam com os pais se anteciparam em narrar os diversos episódios de vômitos, mal estar e tristeza. A comida, em geral pão, batatinha e burritos, era escassa e, muitas vezes, estragada.
Nas salas de detenção, biscoitos e água ficavam em uma mesa, com o aviso de que estavam disponíveis. Mas se alguém tentasse pegar, era logo repreendido pelos guardas, segundo os relatos. A orientação era de que ficassem todos deitados o tempo todo, com as crianças no colo. “Se levantássemos, eles xingavam.”
Elaine, mãe de uma menina de um ano e grávida de cinco meses, diz que não recebeu nenhum tratamento diferente. Ficou presa por 18 dias, dormindo no chão. “Eles arrancaram todas as nossas cobertas quentinhas e deram um negócio de alumínio pra gente usar como coberta. Teve um dia que eu fiquei com tanta fome, mas tanta fome, que o nenê parou de mexer. Fiquei preocupada, mas fiquei na minha porque estava perto do dia de vir embora e fiquei com medo de eles me segurarem lá”, diz.
Eles contam que, quando havia a suspeita de alguma complicação médica, a equipe médica barrava a liberação dos detidos para observação.
A costureira Fiama, de Goiânia, foi detida quando tentava cruzar — com o marido e a filha pequena — a fronteira do México com os Estados Unidos, atravessando com a água pelos joelhos.
“Eles tratam a gente como se fossemos delinquentes mesmo. Eu sei que a gente estava entrando ilegal, que não é certo. Mas a gente tenta o visto e eles não dão, né? A gente quer ir para trabalhar. Não quer ir para roubar, não quer ir para fazer nada, mas eles tratam a gente como delinquente”, lamenta, emocionada.
Fiama se inspirou na irmã, que foi para os Estados Unidos com o filho no ano passado, no esquema chamado de cai-cai: entregando-se à imigração, pedindo asilo e aguardando o julgamento em liberdade em território americano. Mas agora, sob as novas medidas do governo de Donald Trump, as regras estão mais rígidas, e muitos aguardam a deportação detidos pelo serviço de imigração.
Hoje, a irmã da costureira trabalha com faxina na Carolina do Sul e já tinha garantido emprego para Fiama, que colocava grande esperança de melhorar de vida na mudança.
“Você vê, lá ela limpa cinco casas e ganha US$ 150 (R$ 648) por dia. Pra gente ganhar isso aqui não dá” diz a moça, que pretende voltar a trabalhar como costureira; já o marido, que trabalhava numa carvoaria, vai ter que sair em busca de emprego.
A reportagem entrou em contato com o Departamento de Segurança dos Estados Unidos, responsável pelo serviço de imigração, mas não obteve retorno. Em seu site, o serviço de imigração afirma que garante a remoção de estrangeiros ilegais, sem especificar regras de detenção.
A ONG União Americana pelas Liberdades Civis (Aclu, na sigla em inglês), diz em seu site que muitas das táticas de remoção de estrangeiros ilegais dos EUA desconsideram o direito a uma audiência justa no tribunal, e que a militarização da fiscalização tem promovido abusos como preconceito racial até força excessiva.
Sem advogado, sem informação
Os brasileiros também contaram à reportagem que lhes era dada a opção de aceitar a deportação imediata ou recorrer a um advogado, mas nenhuma das duas funcionava na prática.
“Você tem o direito de ligar para o advogado, mas quando pede para o guarda, a polícia não deixa. Enquanto isso, seu processo vai correndo e você perde o prazo. Eu nem tentei o advogado porque vários amigos meus tentaram e não deu”, diz Cleony. Ele mantinha-se sorridente ao contar os detalhes da horrível experiência. “O brasileiro não perde o sorriso”.
Fiama, assim como todos com quem a reportagem conversou, diz que não pretende nunca mais tentar o sonho de voltar aos EUA. “Não imaginava que seria assim.”
“Estava todo mundo passando, a gente achou que ia passar. O policial falou assim pra gente: vocês podem avisar para todo mundo que ninguém mais passa aqui. Pode avisar que o que vocês passaram, os outros vão passar o triplo”, lembra Pamela.
Fonte: G1