Uma profissão que desperta curiosidade e muitas vezes medo em quem não está acostumado a lidar com a morte. O agente funerário é responsável pela preparação do corpo para o velório até o sepultamento, mas durante esse processo, muita coisa pode acontecer. Paulo Alfredo é agente funerário na Funerária Vilhena, e atua no ramo há mais de trinta anos. Em entrevista ao VILHENA NOTÍCIAS ele conta detalhadamente como é a rotina de um agente funerário.
Como tudo começou
“Em 1986, eu havia chegado em Vilhena e estava desempregado já faziam alguns meses. Então um dia passei em frente a Funerária Vilhena, que na época ficava localizada na Av. José do Patrocínio, e vi uma placa dizendo que a funerária precisava de motorista. Entrei e o dono me perguntou se eu tinha medo de morto e eu respondi que não, mas até então pensei que eu seria somente motorista”.
Como Paulo Alfredo já foi policial militar, de certa forma já estava acostumado com morte, mas ele revela que o cargo foi além de motorista.
“Eu comecei a trabalhar na funerária e logo em seguida já estava preparando corpos. Lavava, preparava, fazia todo o trabalho de um agente funerário. Aprendi muita coisa e sou muito grato por isso”.
A rotina durante a pandemia
Quando Paulo é questionado sobre a rotina da funerária durante a pandemia, ele se emociona:
“É muito triste uma pessoa morrer e a família não poder se despedir, o processo é muito doloroso. Desde a internação, a família já não pode mais ter contato com o ente querido. Se a pessoa vem a óbito, não pode ter uma cerimônia de despedida descente. Isso mexe muito com a gente que trabalha nesse seguimento, às vezes as pessoas acham que por lidar com a morte todos os dias, não temos sentimentos, mas não é bem assim. Eu amo a minha profissão, eu tenho muito respeito e muito carinho por cada corpo que passa por aqui e posso garantir que a morte por esse vírus é uma das coisas mais tristes que já presenciei em mais de trinta anos de profissão”.
Quando questionado sobre o procedimento em pessoas que morreram de covid-19, ele explica:
“Não tem preparação de corpo e nem despedida. Se o óbito ocorrer durante o dia, ele sai do Hospital Regional direto para o cemitério. Se for durante a noite, o corpo permanece dentro do carro funerário com o caixão lacrado e no primeiro horário já levamos para o sepultamento. Isso ocorre por que em Vilhena não são realizados sepultamentos durante a noite e o caixão permanece no carro funerário para não correr o risco de uma contaminação. Nós temos toda uma preparação para buscar esse corpo, a equipe é toda paramentada, e após o sepultamento, o carro funerário é totalmente higienizado. A família acompanha o enterro de longe e tudo é feito o mais rápido possível”.
Preparo do corpo
Alfredo conta como é feito o preparo dos corpos:
Quando chega um corpo, mesmo que esteja limpo, nós lavamos novamente, higienizamos, fazemos todo o processo de conservação no corpo para que não ocorra nenhum incidente durante o velório. Depois a família escolhe a roupa, as coroas de flores, as flores que vão no caixão e nós preparamos tudo para o velório. Ligamos para a família e avisamos que está tudo pronto e ao chegar no local do velório, já marcamos o horário do sepultamento.
Necromaquiagem
Paulo explica como é feita a reconstituição facial:
“Quando chegam alguns corpos em que a face está comprometida, seja por acidente ou qualquer outro trauma, nós fazemos a reconstrução. Se precisar, fazemos sutura e depois cobrimos com maquiagem. Em casos em que um trauma muito grande desfigura a face, nós pedimos uma foto do falecido e fazemos uma reconstrução o mais próximo possível de como a pessoa era. Em algum casos é necessário o uso de ceras e gesso para deixar tudo o mais natural.
Essa reconstrução serve para que os familiares possam velar o ente querido com o caixão aberto e poder se despedir sem algum sinal do trauma. Mas há casos em que não tem jeito, o caixão tem que ser fechado.
Desafios da profissão
Paulo Alfredo fala dos desafios enfrentados pelas profissão, e que nem sempre é possível separar o trabalho do emocional.
“Eu sinto a morte de cada corpo que preparo. Eu sei quando uma pessoa morreu tranquila, quando morreu com medo, triste, assustado, quando não queria morrer, etc. Eu consigo saber pela expressão facial. Mas eu sou ser humano também e tenho sentimentos. Já preparei o corpo de muitos amigos meus.
Outra parte difícil é quando a pessoa acaba de perder um ente querido e precisa falar de dinheiro, escolher caixão, e as roupas que serão vestidas no falecido. A pessoa já está com o emocional destruído e naquele momento, nós buscamos levar o máximo de conforto possível para os familiares.
Já aconteceu também de familiares pedirem para assistir a preparação do corpo, outros pedem apenas para vestir o ente querido.
Essa é a parte difícil da profissão, como eu disse eu tenho muito respeito por cada um deles. Às vezes estou preparando um corpo e me pego conversando com ele, e isso faz parte. Já presenciei cada situação nesses anos todos que se eu falar as pessoas nem acreditam”.
Acontecimentos estranhos
Quando perguntado sobre algum acontecimento “estranho”, Paulo revela que já aconteceram coisas que às vezes as pessoas não acreditam, e quando questionado se ele sente medo, ele é categórico: “Tenho medo dos vivos e não dos mortos”.
“Já aconteceu cada coisa comigo nesses anos todos de profissão e quando eu conto, algumas pessoas acham que é mentira. Mas eu sei o que eu vi. Já vi muitas pessoas que enterrei e já conversei com morto. Já aconteceu de eu estar indo levar um corpo para outra cidade e durante a viagem em certo momento, ele estava sentado ao meu lado no banco do carona”
Mas Paulo deixa bem claro que não sente medo e que até hoje só teve encontros com “almas boas”.
Fato marcante
Paulo relata um fato que marcou bastante sua profissão:
“Em 1998, nós tínhamos uma funerária em Cacoal e quando foi mais ou menos 2 horas da manhã, a polícia nos ligou avisando que havia um corpo em determinado local. Quando chegamos lá, o falecido estava bem vestido, camisa e calça social, deveria ter entre 30 e 35 anos. Estava em um matagal e havia levado uma facada no peito.
Levamos ele para a funerária e como ele estava sem documentos, liguei na rádio e avisei que havia um corpo sem identificação na funerária. Algumas pessoas diziam conhecer ele e até falavam o nome, mas mesmo assim, nenhum parente apareceu. Algumas pessoas diziam conhecer sua esposa, e diziam que ele era de outra cidade.
Preparei o corpo dele e deixei o caixão aberto, pois até tarde da noite estava chegando gente para ver ele. Quando foi mais ou menos 11 horas da noite, fechei a capela e fui dormir no quarto ao lado.
Estava uma chuva fininha e de repente alguém bateu na porta do meu quarto. Quando eu abri, era uma mulher loira e duas crianças, uma menina um menino com idade entre 5 e 8 anos. Um detalhe que me chamou a atenção, é que os três estavam vestidos de branco.
Então a mulher me falou que havia escutado na rádio que um rapaz foi encontrado morto, e ela gostaria de saber se era o marido dela. Levei ela até a capela ao lado e para a minha surpresa, o corpo não estava no caixão. A mulher me olhou e perguntou onde ele estava.
Então fui até a sala de preparação que era anexa à capela e o cara estava lá, em pé de frente para um espelho arrumando a roupa que eu tinha colocado nele. Coloquei a mão na suas costas e disse:
O que você está fazendo? Você está morto. E ele me disse que não estava morto. Na hora fiquei sem entender o que realmente estava acontecendo e falei que havia uma mulher com duas crianças querendo vê-lo.
Ele saiu andando e abraçou a mulher as crianças e eles foram embora. Eu fui atrás, estava chovendo, e eu dizia para ele que precisava voltar, mas foi tudo em vão. Quando eles viraram a esquina, já não vi mais ninguém.
Eu voltei para a funerária pensando no que eu iria falar para os meus colegas de trabalho, afinal eu tinha preparado o corpo e o cara sai andando como se nada tivesse acontecido. Eu iria falar o que? Que ele foi embora? Levantou do caixão e saiu?
Durante minha volta até a funerária fui pensativo, cheguei até a me beliscar para ver se não era sonho. E não era.
Quando voltei para fechar a capela, o cara estava lá, dentro do caixão, do jeito que eu havia deixado. Eu fiquei muito assustado, mas creio que a família dele foi busca-lo. Como não apareceu nenhum familiar, ele foi enterrado como indigente.
Esse foi o caso que mais me marcou, essa profissão não é para qualquer um”.
Paulo Alfredo diz que não escolheu a profissão por dinheiro, e sim por necessidade, e o que mais lhe satisfaz nessa profissão é ajudar o próximo.